“Mesmo com tantas novidades já guardadas na memória Jururu teve uma grande surpresa naquela parte da floresta na qual eles haviam acabado de entrar. Tudo era muito colorido e diferente.“
É só pararmos um pouco para observar como as crianças estão ocupando os espaços, relacionando-se umas com as outras, com os smartphones e com os símbolos culturais do seu tempo e vamos entender que os saberes sobre a natureza que nos rodeia ou sobre a substância que molda a nossa cultura, cada vez mais, correm o risco de ficarem soterrados nessas cosmópoles tão pouco identitárias que abrigam a maioria de nós.
Gosto imensamente da poesia da música Sêmen, do Mestre Ambrósio, de autoria de Bráulio Tavares e Sérgio Veloso :
Como posso pensar ser brasileiro
E enxergar minha própria diferença
Se olhando ao redor vejo a imensa
Semelhança ligando o mundo inteiro
Como posso saber quem vem primeiro
Se o começo eu jamais alcançarei
Tantos povos no mundo e eu não sei
Qual a força que move o meu engenho
Como posso saber de onde eu venho
Se a semente profunda eu não toquei
Pois, tocar essa “semente profunda” é essencial e esse contato precisa começar na infância, onde se estabelecem os laços. Por isso, temos que pensar em estímulos alternativos. A literatura, a música, as brincadeira são bons exemplos que podem iniciar nas crianças caminhos para a construção de uma consciência cultural. Esses caminhos precisam ser estimulados por nós, pais e educadores, ou correremos o risco de uma “crise do não pertencer”.
Vou avisando: nem adianta tentar provocar uma concorrência com o poder da indústria estrangeira de entretenimento. Poderosamente interessantes, as grandes produções do circuito mainstream são difíceis de serem vencidas no quesito “fascínio da criançada”. Mas, precisamos estar atentos ao fato de que, junto a elas, vem a desconstrução do lugar e da identidade. Vem a neve, a princesa, o duende, o leão, a zebra, o halloween. Um bombardeio profuso de elementos exóticos e bem pegajosos, por sinal. Portanto, o melhor a fazer é caminhar ao lado, promovendo sempre um contato saudável, divertido e espontâneo.
Brincar é um bom Caminho…
Além de contar histórias sobre as lendas brasileiras, gostava de inseri-las nas nossas vivências. Quando meu filho Pedro tinha 4 anos, serrei uma garrafa de vidro e prendi dentro dela um saci que compramos na porta do Sítio do Pica-Pau Amarelo, em Taubaté. Era uma escultura de epoxi muito bonita, do menino sentado em um tronco e fumando o cachimbo. Deixei um tempo a garrafa fechada com uma rolha e, quando alguma coisa de Pedrinho sumia, eu dizia que o saci estava fugindo e aprontando das suas. Por vezes, Pedro ficava escondido na porta do quarto, tentando surpreender a fuga do diabinho. Meses depois, desenhei uma cruz na rolha pra ele não fugir mais: “Pedrinho, a partir de agora é sua a responsabilidade sobre o brinquedo perdido!”
Já com certa afinidade com os sacis e seus costumes, ficava radiante quando, nas viagens de carro, víamos aqueles pequenos redemoinhos de vento na estrada. Era uma bela conquista ter encontrado um saci pelo caminho.
Eu sempre deixava bem claro (e na história do Lá Dentro da Mata também fiz questão de deixar) que esses seres vivem na nossa imaginação: “quanto mais temos capacidade de sonhar, mais força ele têm de existir”.
Para mim, sempre foi muito mais legal Pedro acreditar em saci do que em Papai Noel, por exemplo. Uma crença mais pura, divertida e democrática. E não tenho dúvida que o menino se divertiu bastante com os seus sacis e curupiras imaginários.
A Estima Especial pelo Saci
Particularmente, gosto mais do saci do que de qualquer outra criatura no nosso folclore. É a perfeita mistura do que representa o povo e a cultura brasileira.
O saci provavelmente surgiu a partir do mito indígena dos Yacis-Yaterés, pequenos demônios de cabeça vermelha que imitam os sons de uma ave de mesmo nome para enganar caçadores ou crianças. A partir das contações de histórias dos pretos escravos nas fazendas, a criatura teria sido recriada até virar um menino de uma perna só, cabeça de fogo e cachimbo. Depois, o gorro português entraria na mistura para dar forma à mais brasileira das criaturas mágicas que conhecemos.
Ziraldo já contou uma história um pouco diferente, protagonizada pela ave (trata-se da Dromococcyx phasianellus, também conhecida como “peixe-frito”). Mas, parece mesmo que o pequeno demônio Yaci-Yateré, mito de algumas etnias indígenas de outras partes da América, tem muita afinidade com a história do Saci Pererê.
Há uma referência clara e viva no Candomblé. Geralmente relacionado a exu.
Sua presença na nossa cultura é diversa e ramificada. A semente, de fato, não será nada fácil descobrir. É exatamente essa criação diluída e múltipla, de autoria de todo o povo, que faz dele folclore. Mas não apenas: é folclore e é um espelho desse povo. Por isso tão importante que participe do nosso imaginário infantil.
O nosso folclore é fascinante o bastante para ficar bem guardado na cabeça de cada criança, se a história for contada. É assim que essa mitologia tão rica permanecerá sempre viva, fazendo-nos entender melhor quem somos e a que lugar pertencemos.
Dicas de livros que abordam as Lendas Brasileiras:
Doze Lendas Brasileiras – Como Nasceram as Estrelas, de Clarice Lispector. Essa edição é lindíssima e Clarice dispensa comentários. Necessário!
A Folha lançou uma coleção bem bacana de 25 livros sobre personagens e histórias do nosso folclore. É a Coleção Folha Folclore Brasileiro Para Crianças.
O Saci é um clássico de Monteiro Lobato com sua turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Foi a história responsável pela grande popularidade do menino de uma perna só. Impossível não se divertir com as aventuras de Pedrinho com o Saci pela vida mágica da noite na floresta.
A Turma do Pererê é um clássico quadrinho bem brasileiro, para pais e filhos gargalharem juntos. Do genial Ziraldo.
A Onça e o Saci traz a escrita leve e divertida de Pedro Bandeira em uma engraçada história que brinca com a sagacidade do diabinho.
Não poderia deixar de sugerir o Lá Dentro da Mata e o No Caminho das Águas, as aventuras de Jururu, Poti e Airy pela floresta!
Boa leitura